Sobre a autora


Paula Fábrio nasceu em 1970. É mestre e doutoranda em Literatura pela Universidade de São Paulo. Desnorteio [Ed. Patuá], seu primeiro romance, foi Vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2013, na categoria estreante. Seu novo livro, Um dia toparei comigo (Foz), é finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2016 e recebeu a bolsa de criação ProAC - Programa de Ação Cultural da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo.


segunda-feira

O olhar em origami


Ou

Uma análise despretensiosa


Por Marco Aurélio Fiochi


Já é uma afirmação de senso comum a de que grandes obras surgem em momentos de crise, seja ela financeira, seja política, cultural, identitária, artística e, principalmente, pessoal, aquela que sempre nos convida a um balancete. Foi dessa natureza o conflito que detonou o processo criativo em Desnorteio, livro que marca a estreia (corajosa, nas palavras da autora do prefácio da obra, a poeta Mariana Ianelli) de Paula Fábrio, lançado em dezembro de 2012 pela editora paulistana Patuá. “Balancete”, inclusive, é o nome do primeiro capítulo da obra e expõe o motivo de sua existência. O fim de um negócio próprio depois de cinco anos de doação intensa e a recuperação de uma operação que se mostrou mais intrusiva do que o inicialmente imaginado levaram a autora, em 2009, ao recolhimento e, deste, ao olhar para seu passado e presente.

Desnorteio, ao contrário do que o nome indica, é uma tentativa de norte. Não se trata apenas de um romance biográfico, narrativa de acontecimentos que permearam a chegada da autora à vida adulta. É isto e é mais. Paula mergulha na história familiar trágica sem tentar compreendê-la, explicá-la. O desenrolar da trama escancara a trajetória de degradação de seus entes de forma crua, dando voz aos atores do drama vivido, narradores fugidios, que estabelecem cumplicidade com o leitor exatamente pela crueza com que se expõem.
Crua também é a reflexão que se faz do presente, nos momentos em que assume a narrativa a Mulher de 40 Anos, espécie de duplo ou mimese da autora. Quando toma a condução da história das mãos dos narradores fugidios, ela instaura um presente igualmente desprovido de véus. É daí que nascem alguns dos grandes aforismos que dão profundidade ao texto, a exemplo da frase estampada na contracapa: Porque no labirinto da vida, liberdade é enquanto sonhamos. E para sair, só voando.


A reconstituição do passado é pautada pelas impressões atuais do que se viveu aos 15 anos, opção que abre espaço e torna justa a liberdade da ficção. Os fatos se sucedem enquadrados em uma seqüência de recortes e ângulos geométricos, metaforizando os pedaços de vestimenta irregularmente recortados por uma das personagens. O olhar em origami volta-se para aspectos fronteiriços da condição humana, como a loucura e a mendicância.
Não menos liminar é o presente, em que a ideologia neoliberal infiltrou-se, com sua menos-valia, nas instâncias da vida nas sociedades ocidentais. Os recortes irregulares do tecido agora dizem respeito à frustração daquele que vê a mercantilização da velhice, com seus inúmeros paliativos e formas de escape, e a precariedade escancarada das relações de trabalho. São exemplos da mesma loucura e mendicância, só que de forma muito mais sub-reptícia. Antes, ao ser humano era dado alienar-se; hoje resta a ele, por sobrevivência, compactuar com esse “tempo mais vagabundo, malandro, esse agora que escolheram pra gente viver”, como primorosamente Cazuza resume a atualidade na canção Milagres.
No entanto, o saldo do balancete a que a autora convida os leitores de Desnorteio é positivo, num exercício que nos faz lembrar matematicamente que duas potências negativas se unem para um resultado de natureza oposta. Sai-se do livro com a sensação de que o passado foi resolvido pelo efeito sedativo da memória. Os narradores fugidios ficarão guardados num escaninho da lembrança. À Mulher de 40 anos, como antídoto à loucura, resta a consciência e o dom de narrar. Parafraseando o famoso verso de Camões, com Desnorteio Paula “está em paz com a sua guerra”.





O jornalista Marco Aurélio Fiochi, tal qual personagens de Desnorteio, é um Homem de 40 anos que observa os efeitos da ideologia neoliberal na vida das sociedades ocidentais e tenta compor um todo a partir do recorte de pedaços irregulares do tecido do presente. E-mail: maufiocchi@gmail.com