Quebrando a regra, hoje não vou falar de outros livros, tampouco trago um texto de minha autoria. Após o lançamento de Desnorteio, recebi esta belíssima carta de um novo amigo, o poeta Antonio Siyza, a respeito das primeiras páginas de meu romance. Reproduzo seu conteúdo aqui, e faço uma ressalva, amigo Antonio: quando nos encontramos da primeira vez, não mencionei que não gostava de Dom Quixote, mas que este não era meu livro de cabeceira, talvez por ser muito "masculino?". No mais, creio que o cavaleiro de Cervantes nos faz rir, mas aquele mesmo riso que nos vai desaparecendo da boca, quando começamos a intuir o mundo, este mundo. Talvez o mesmo mundo sem rumo e sem norte que certo dia ousei rabiscar. Obrigada, querido Antonio, que este seja o primeiro selo de nossa amizade.
"Paula,
Que estranha
felicidade e não quero gastá-la falando, mas alguém deve falar. Estou alegre
pois alguém teve a petulância de escrever um livro tão belo. Estou alegre por
ter te conhecido antes de conhecer o teu texto, conheci primeiro a pessoa de Paula,
depois o seu talento, insuspeito embaixo de tanta delicadeza.
Paula o teu livro me dói, o teu
Quixote me dói todos, os teus personagens
são constrangedores, loucos, sujos,
pobres e humanos. Desnorteio é um
tapa na cara. Quando você me falou que não gostava de Dom Quixote, dei uma
resposta superficial. Se lembra? Só depois de ler o teu livro é que entendi
melhor, e parece que você não gosta da crueldade que os outros dedicam
ao cavaleiro louco, aliás,
crueldade que Cervantes parece compartilhar, ao
convidar a nós, leitores, a rirmos da loucura do velho, pois nós
sentados sobre o nosso bom senso, compartilhamos da razão, o outro, o louco, só se presta ao riso. A
loucura é sempre do outro. Os barões se aproveitam da presença do louco para a burla,
para fazer do bobo, rei. O carnaval
cerca o cavaleiro, eis o pharmacon, o
bode da expiação, a vítima ritual.
O mais grave é que no Brasil o carnaval é o
ano todo, a capacidade de empatia é rara, empatia está muito próxima do
conceito freudiano de transferência; se para época de Cervantes o louco tinha ainda um espaço, para a
modernidade, esse espaço foi por longo tempo o manicômio, talvez rituais da
época de Cervantes socializavam a
loucura, para nós o louco é insuportável porque percebemos que a loucura é
contagiosa, ou percebemos no louco a
nossa própria condição. Pra afastá-la nos
ocupamos, somos seres ocupados, se o manicômio não é mais a solução, nos
distanciar parece um ato de higiene. Não olhar, uma proteção.
Paula se nega
a não olhar, Paula se nega a não ver,
tem coragem para falar de algo que
no Maximo para muitos é apenas uma piada familiar. Paula se arrisca a encontrar o seu próprio quinhão, sua herança, não só de
loucura mas também de solidão. Não se convidam para a festa loucos e poetas,
pois são capazes de estragar a alegria
de todos com a sua presença? O que é a
capacidade de empatia para um escritor? O
possibilita de alguma forma dar voz a esses homens nus, a essas pessoas
que não têm voz, não podem gritar. O
escritor empresta as suas cordas vocais empresta-lhes o seu grito. É pouco, é
muito pouco, mas é exaustivo. Pois a loucura dói, pois a vida dói.
Estou feliz
pois para uma sensibilidade como a de Paula, o caminho mais fácil seria
sucumbir ao silêncio, estou feliz porque
ela escolheu a fala, o grito, urro, a literatura como forma não de diminuir a
dor mas de enfrentá-la, de aceitá-la.
Para nossa época que se gaba da própria
superficialidade, que deseja acima de tudo a diversão ou a piada, a leveza como desculpa, Paula encontra um tema
indelicado, roto, sujo. Cria uma maneira para estar atenta.
Parabéns Paula
Antonio"
Para quem quiser entrar em contato com o poeta Antonio Siyza - elnosferatus@yahoo.com.br
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